quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A Volta do Embornal

Estava no supermercado, esforçando-me para não levar nenhuma sacola plástica para casa, o que nem sempre consigo fazer, quando encontrei com uma colega. Militante do movimento de trabalhadores desde longa data, além da surpresa de saber que moramos no mesmo bairro, mais surpreendida ficou em saber que uso sacolas permanentes para as compras. Disse a ela que era a volta do embornal, só que agora, numa versão contemporânea e motivada pela consciência ambiental. Disse-me que “não tinha paciência para isso” e, de certa forma, ironizou minha “ecochatice”. Apesar de não usar literalmente essa expressão, talvez nem precisasse dizê-la com todas as letras, visto que precisamente subliminar se fez expressar. Para mim, “ecochato” parecia expressão datada, de décadas atrás, quando do início das lutas ambientais em terras tupiniquins, e referência sepultada pela centralidade que os problemas ambientais parecem ganhar no cotidiano da vida nos centros urbanos contemporâneos, midiatizados pela grande imprensa ecologicamente correta.

Infelizmente, esse tipo de postura, não se circunscreve a uma amizade minha. Pouco depois, lembrei-me de outros colegas, ativistas pelos direitos da infância & adolescência, que em uma conversa no intervalo de um encontro de ONGs, reconheceram sua “canseira” com as regras “ecochatas” da reunião e sua impaciência com as lutas sociais de outros campos de políticas públicas. “Narciso não acha belo o que não é espelho” parece ser pouco para explicar essa situação.

Essas duas histórias, longe de se constituírem em situações pontuais, infelizmente, parecem carregar o sentido de uma época na qual a sociedade civil organizada está cada vez mais presente nos “corações e mentes” dos brasileiros. Isso exige um exame bastante crítico desse contexto, ou quem sabe, dessa condição estrutural da sociedade civil e suas lutas, o que busco realizar de forma ligeira nesse ensaio, sob todos os riscos da simplificação que a argumentação rápida dos ensaios imprime à reflexão crítica.

Claro que, no meio universitário, acabamos virando todos uns chatos, não exercitando sobre nós mesmos a mesma crítica que cultivamos em nosso labor, exigente quanto ao pensamento sistemático e ao ceticismo recorrente. Ainda assim, tenho que reconhecer que, com a mesmice e o desânimo precoce de muitos de meus pares na academia, vários ainda em início de carreira acadêmica, imaginar que nós, acadêmicos, nos fiamos no talho do trabalho intelectual exigente, crítico e sistemático é ser ingênuo demais.
No entanto, o que importa é discutir a resistência, justificada e, na maioria das vezes, injustificada, de se trazer para o cotidiano as preocupações ambientais. E, tão preocupante quanto, é perceber que o universo da sociedade civil continua, como sempre foi, cindido entre diferentes lutas por direitos e com baixíssima capacidade de convergência de agendas entre os cada vez mais variados e heterogêneos movimentos sociais.

Formado no campo das relações de trabalho, mas já distante dele como pesquisador há alguns anos, a visão que tenho, agora como investigador da área de cidadania, esfera pública e responsabilidade socioambiental, é que as lutas empreendidas pelos grupos de interesse dos trabalhadores pouco ou nada dialogam com lutas ampliadas da sociedade em várias de suas frentes (cidadania política, meio ambiente, respeito às culturas locais, ...).

Prova cabal dessa minha desconfiança, na análise apressada que faço neste ensaio, é que com raríssimas exceções, sindicatos, centrais sindicais e observatórios do trabalho sequer enunciam mínimos posicionamentos sobre a ação social e ambiental das empresas. Muita dessa separação de agendas deve provir da visão de raiz marxista, bem representada pela epígrafe de Trotsky, “o capitalista dá com a mão esquerda o que toma com a direita”. Porém, independentemente de uma orientação maior ou menor em direção ao espectro da esquerda, a sensação que fica é a de que movimentos dos trabalhadores importantes e, muitas das vezes legítimos, pouco se interessam e têm a dizer sobre o que as empresas fazem de bem (ou mal), de forma premeditada ou não, pelos seus stakeholders internos (trabalhadores) e externos (comunidade, consumidores, governos, ONGs, ...).

Na literatura científica no campo das relações de trabalho essa aridez e, na minha singela e rápida análise, mediocridade investigativa pouco ou nada consegue enunciar sobre a convergência ou não dos movimentos trabalhistas com outras frentes de lutas da sociedade civil. Uma das raras exceções é Michael Burawoy, sempre lúcido e brilhante pesquisador inglês, um dos poucos capazes de promover esse debate de forma articulada, recorrendo à nata dos estudos no campo das relações de trabalho e da ciência política sobre sociedade civil para tentar descortinar um horizonte no qual as atenções e legitimidade dos movimentos dos trabalhadores em relação à sociedade passam por renovadas frentes de luta social e ambiental.

Na verdade, essa convergência não parece ser tão exótica assim, visto que no clássico Norberto Bobbio tem-se que as aspirações da esquerda convergiriam para a igualdade, ao passo que as da direita caminhariam para a liberdade. Dessa forma, muito sentido faria tentar compreender porque aqueles que enunciam o desejo de equidade no trabalho ou na infância & adolescência são, ao mesmo tempo, incapazes de perceber a centralidade da equidade e da pobreza nas lutas ambientais e desenvolver agendas convergentes de ação social.

No entanto, o leitor que me agüentou até agora pode, como infelizmente é muito comum encontrar hoje em dia na academia e na vida cotidiana, pensar que esquerda e direita são categorias ultrapassadas e anacrônicas. Simplismo de fácil digestão para cultos e incultos, a implosão dessas categorias parece-me afoita, ingênua e arriscada, pois, como vemos em Robert Kurz e também no excepcional Eric Hobsbawm, se a experiência comunista historicamente pouco construiu em termos de emancipação humana, muito clareia sobre as agruras da sociabilidade contemporânea e suas crises, sejam elas econômicas, sociais, culturais ou mesmo ambientais.

Mas, longe das pendengas acadêmicas, assoberbados pela sina das lutas sindicais e dos direitos da infância & adolescência, meus três amigos continuam a escrever a triste caminhada da sociedade civil brasileira, cindida em seu ventre, para gozo dos conservadores travestidos de céticos na sociedade da ditadura ecologicamente correta, e incapaz de se sintonizar com as lutas integrais da sociedade. Porém, nem tudo é decrepitude no jardim da (in)civilidade contemporânea. Haja Eric Hobsbawm, Junger Habermas, Boaventura de Sousa Santos e Milton Santos para dar conta de tantos desencontros, tanto na academia quanto no cotidiano dessa nossa sociedade civil, que esconde muito bem a desconfiança que ainda nutre pelos “ecochatos”. E eu, que já naveguei por vários mares da luta por direitos, nem sabia que tinha virado “ecochato”...

Publicação original: TEODÓSIO, A. S. S. . A Volta do Embornal. Circuito Notícias, Brumadinho / Minas Gerais, p. 6 - 6, 01 set. 2009.

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