quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

Quando os pobres chegam na classe média

Um dos fenômenos mais interessantes, instigantes e provocativos do cenário brasileiro dos últimos anos é a redução da taxa de pobreza. Novidade difícil de se imaginar, ainda que sempre fosse alvo dos esforços de qualquer brasileiro minimamente consciente das mazelas do país e objeto de desejo do pensamento crítico, a redução da população em situação de vulnerabilidade social carrega em si os paradoxos de uma nação que avança, mas nem sempre deixa de ser o mesmo Brasil: contraditório, complexo e cheio de artimanhas. Ora, “o Brasil não é para principiantes”, como nos bem lembra Tom Jobim.

Se o leitor pensa que vamos tratar aqui de artimanhas da elite para domesticar e explorar os pobres, lamento muito, mas esse repertório ficou pelo caminho, assim como ficaram pela estrada, nem sempre como sinal de maturidade democrática e política, as utopias (belas e não tão belas assim) dos anos 60 e 70 com seu discurso vitimizador dos “fracos e oprimidos”. Na verdade, tratamos aqui de um Brasil que ora é pura utopia, com o que tem de melhor no planeta (fauna, flora, gente, governo, ...), ora é pura decepção, com o que há de pior na raça humana (corrupção, nepotismo, descaso, desgoverno, ...). Entre o discurso eufórico dos partidários da regulação e ação governamentais e dos crentes na lenga-lenga do livre mercado acerca da inclusão dos pobres no mercado de consumo e o discurso cético daqueles que só enxergam assistencialismo em qualquer programa governamental, sobretudo o bolsa-família, reside a necessidade de uma análise realmente profunda, séria e inovadora da realidade brasileira contemporânea.

Quem se propõe a isso é Jessé Souza em seu novo livro “Os batalhadores brasileiros – nova classe média ou nova classe trabalhadora?” (Ed. UFMG). Para o pesquisador da UFJF, não poderíamos falar de uma nova classe média, pois a ascensão de parte da população pobre a patamares mais elevados de renda e consumo se dá pela ampliação de jornadas de trabalho em condições de labor nada decentes e pela disputa sempre desigual e desleal com a tradicional classe média, bem adestrada a navegar socialmente no “habitus” da disciplina, cultura educacional e profissionalismo, pilares centrais das sociedades capitalistas. Assim como no livro anterior, “A Ralé Brasileira – quem é e como vive”, a análise de Jessé Souza, concordemos ou não com ela, é capaz de desvelar olhares óbvios e ultrapassar concepções polarizadas e esteriotipadas sobre a pobreza brasileira. Novamente como fiz com o “Ralé Brasileira”, recomendo fortemente a leitura desse mais novo livro do autor.

A verdade é que esses antigos pobres, que saíram da pobreza, mas não chegaram à classe média, são a parte boa da maçã. Não é a toa que Jessé Souza os chama de “batalhadores brasileiros”. Grupo bem sucedido, se é que podemos dizer isso de quem se estropia de tanto trabalhar em condições precárias e empregos (quando não são subempregos e bicos) mais precários ainda, essa pobreza desperta a atenção de políticos, homens de negócios e de muitos “ongueiros”, nem sempre com as boas intenções daqueles que sempre se indignam diante da pobreza e desigualdade brasileiras. Nova massa de manobra política, consumidores ávidos e pessoas em vulnerabilidade social que oferecem ótimo rendimento em programas e projetos sociais de ONGs, esses “batalhadores brasileiros” parecem se tornar objeto de desejo tanto do Estado, quanto do mercado e da sociedade civil (nem sempre tão cívica assim).

Os mais céticos podem pensar que a inclusão via consumo é puro sinal de mero consumismo. Pobres e mais pobres se endividando nas Casas Bahia. Esse seria outro grande motivo para esses antigos pobres não chegarem à classe média. Ainda que mereça respeito esse tipo de análise, mais promissora parece ser a concepção de pesquisadores como Canclini e Lipovetsky, que enxergam possibilidades de emancipação, inclusive e sobretudo política, nos cânones do consumo, pois como todo espaço de sociabilidade contemporânea, o consumo carrega em si potências de ação articulada e consciência do espaço público.

Controvérsias a parte, esses ex-pobres exigem de quem se interessa pelo Brasil que aprendemos a sonhar (igualitário, democrático, sustentável, ...) uma imaginação sociológica, tomando aqui emprestado a expressão célebre de Wright Mills, capaz de penetrar a fundo no lado sombrio e no lado luminoso das “Terras Brasilis”. Quem sabe não serão esses ex-pobres, comprimidos entre a pobreza e a classe média, que nos mostraram que um novo país é possível. Esse é o desejo de Jessé Souza. Por enquanto, parecem apenas promessa num sonho cheio de riscos e armadilhas. Com a palavra os “batalhadores brasileiros”...

Publicação original: Teodósio, A. S. S. Quando os pobres chegam na classe média. Hoje em Dia, Belo Horizonte, p. 7-7, 31 mar. 2011,

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