terça-feira, 10 de janeiro de 2012

A Fonte da Indiginação

Os tempos atuais parecem deixar atônitos a muitos de nós. Que bom, pois quando vemos o mundo com a lente cansada da visão ensimesmada, como diria Machado de Assis, a vida se torna menos instigante e convidativa. Os recentes eventos de mobilização e contestação da sociedade, não tão civil e organizada assim, nos países muçulmanos nos convidam a uma reflexão para além de nossas meras e pouco sólidas certezas. Lembrando, Marx, tudo o que é sólido se desmancha no ar. Tudo o que nós, cristãos ocidentais imaginamos pela visão média e superficialmente informada sobre o Islã, seus povos e o Oriente parece desmanchar frente a nossa percepção de surpresa frente às imagens na televisão.

No entanto, quando se dá espaço à fala daqueles que se dedicam ao entendimento das sociedades não ocidentais, pode-se perceber que os recentes eventos de rebeldia e contestação contra regimes totalitários nos países muçulmanos não são tão surpreendentes assim. Longe de representar uma vitória da democracia a la Estados Unidos e a expansão do capitalismo pretensamente justo e igualitário para todo o planeta, a mobilização da sociedade contra as injustiças sociais e econômicas e os desmandos e repressão política governamentais nesses países tem raízes na própria formação cultural e social islâmica, que ultrapassam o lugar comum que a intelectualidade pró capitalismo ultra liberal teima em querer reforçar: culturas atrasadas, totalitárias e socialmente injustas como a islâmica tendem a desaparecer ou no mínimo ceder espaço para os valores ocidentais nesse mundo que globalizou a democracia representativa e o livre mercado.  Ou seja, na visão de muitos, enfim a democracia e uma sociedade civil ativa e forte chegaram ao mundo islâmico, tendo a reboque o livre mercado.

Quem dera a explicação fosse tão simplista e fácil. Para não citar muitos e muitos autores e aborrecer nosso resignado leitor, menciono nada menos, nada mais, que Amartya Sen, prêmio Nobel de Economia. Esse indiano, professor em Cambridge, destaca bem as raízes éticas, socialmente justas, igualitárias e de respeito à diversidade presentes na formação cultural oriental, que vão desde os escritos de Confúcio, passando pelo príncipe indiano Ashoka, até chegar na efervescência intelectual e científica do Islã medieval. Essa tradição muçulmana soube dialogar com as culturas dominadas, incorporar inovações e difundir valores como a justiça e o zelo pela população governada. O que nós, ocidentais ensimesmados pela lenga-lenga pseudo-igualitária da simples democracia representativa (aquela que se resume ao voto) e do mercado ultra livre (uma abstração, pois nenhum mercado em momento algum da história da humanidade foi realmente livre, mas sim sempre regulado, graças a Deus, por normas sociais e governamentais) esquecemos de considerar é que uma tradição de justiça social, ética e igualdade também está nas entranhas da cultura muçulmana.

Parece vir dela a fonte de tanta contestação e indignação contra os governos que se apropriaram do poder e o utilizaram para reforçar a riqueza de um grupo de aliados. Novas mídias, Internet e o frescor da liberdade no Ocidente ajudam a reverberar essas lutas e essas aspirações, mas não podem ser entendidas como a simples causa ou vetor de agora termos jovens, homens e mulheres caminhando pelas ruas de alguns países muçulmanos contra regimes totalitários, que foram incapazes de promover a liberdade e a justiça social e econômica. Nós, latinoamericanos, devemos olhar também para nossas agruras, pois pesquisas sobre um possível retorno a governos ditatoriais nos nossos países, em especial no Brasil, não são trazem alento (a maioria dos respondentes não se importaria com um possível retorno dos regimes autoritários). Precisamos aprender com a sociedade civil islâmica onde habita a fonte da indignação e assim, sermos mais generosos e respeitosos frente à tradição islâmica de justiça e respeito pelos governados, que uma parte dos movimentos sociais, aqueles dedicados ao terrorismo e à violência, parecem também ter esquecido, mas que nunca deixou de fazer parte da verdadeira formação muçulmana.

Publicação original: TEODÓSIO, A. S. S. . A fonte da indignação. Hoje em Dia, Belo Horizonte, p. 32 - 32, 24 fev. 2011.

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