sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

Morte e Vida Severina nas Escolas e nos Shoppings

Tratar dos assuntos da ordem do dia, em uma coluna que se propõe a discutir tendências, traz sempre riscos; o maior deles o debate de algo que talvez não se imponha como perspectiva para o futuro. Tratar de assuntos que exigem competências fora da área central de atuação do articulista é ainda mais arriscado e pode resultar num em um discurso interessante, mas pouco profundo e consistente. Ainda assim, arrisco-me na discussão dos recentes episódios que chocaram a todos: a violência dentro na escola de Realengo e num shopping center na Holanda.
 
Reportagens e mais reportagens, debates e mais debates, com inúmeros especialistas e pessoas sem conhecimento específico, mas com muito ou as vezes pouquíssimo conhecimento prático da socialização de crianças na escola, na família e na sociedade, geram uma profusão de explicações e posicionamentos. Muitos deles, catastrofistas. Outros tantos, pautados na culpabilização de governantes, da mídia, do cinema, da sociedade consumista e individualista, e por aí vai. Longe de buscar uma explicação final e pronta para esses tristes e chocantes atentados, que infelizmente não são tão novos assim no caso brasileiro, quero discutir uma questão bastante específica: o caráter da violência na formação dos indivíduos nas sociedades modernas.
 
Remeter à violência explícita dos filmes hollywoodianos atuais e aos apelos da grande indústria da mídia para o consumismo, inclusive para o consumo da violência e do erotismo, a causa maior para os atentados que se multiplicam pelo mundo afora e chegam a acontecer mesmo em países que sempre se gabaram de ser um povo pacífico e calmo, como nós brasileiros costumamos e gostamos de nos imaginar, parece óbvio e incontestável. No entanto, quando analisamos o papel da violência na constituição das sociedades modernas, imaginadas como espaço de civilização e de não barbárie, nos deparamos com a realidade de que na socialização e na educação dos indivíduos modernos a violência tem papel central. Não somos tão doces bárbaros quanto nos imaginamos.
 
É partir dessa constatação que se evidencia o fato de que, toda e qualquer geração, sempre “brincou” com a violência, desde a mais tenra idade. Meus colegas de quarenta anos devem se lembrar das brincadeiras de faroeste, bang-bang e polícia e ladrão, esgueirando-nos pelos portões, becos e postes para “abatermos” nosso inimigo. Revólveres de plástico, cintos de caubóis e chapéus de soldado fizeram parte de nossa infância. Sem falar nos filmes com tiros e mortes e de vilões e mocinhos. Um leitor mais crítico vai dizer que hoje a violência é muito mais explícita do que naqueles tempos. Com certeza, sim. Mas, o que parece estar por detrás é algo mais relevante e que ultrapassa a perspectiva de um embate entre cidadãos de bem e boa índole sendo manipulados por gestores inescrupulosos da indústria cultural, principalmente a cinematográfica. Não que isso não possa existir. O problema é acreditar que milhões são manipulados por centenas de vilões hiperpoderosos, que detém o poder da grande mídia. A sociedade, a la Foucault, cria e recria seus processos de dominação, que contém zonas de conforto, sobretudo no desfrute (para não dizer consumo) da violência, inclusive por parte de quem se torna alvo dessa violência. Cuidado para não pensar que busco mitigar ou eliminar a culpa de quem praticou tais atentados. São pessoas que merecem punição pelas faltas graves e injustificáveis que cometeram.
 
O que parece fazer a diferença entre as gerações anteriores e as atuais com relação ao desfrute da violência, inclusive lúdico através das brincadeiras de crianças, é a perda da dimensão da mediação. Se antes a violência podia ser mediada e sublimada para um lugar bem localizado e controlado no imaginário e na psiquê infantil e adulta, hoje ela se materializa na concretude do ato violento sem nenhuma mediação, ou seja, sem nenhuma sublimação. A produção midiática da violência encontra o desejo de consumo ou desfrute dessa mesma violência sem mediação, mas como pura concretude, que nada mais é do que uma psicopatia nua e crua.
 
Isso se explica, no campo das dinâmicas do consumo contemporâneo, pela ênfase na “experienciação” de produtos e serviços, cada vez mais com um caráter radical dessa vivência, ou seja, pela produção da necessidade e pelo desejo de não apenas acessar determinados produtos e serviços, mas sobretudo vivenciar (experienciar) aventuras, emoções e status associados aos produtos, agora vistos não apenas como recursos para um melhor viver, mas uma verdadeira forma de viver. Esse é o caminho aberto para que os indivíduos “experienciem” a violência, sem mediação ou faz-de-conta. Não é a toa que um dos últimos atentados aconteceu justamente em um shopping na Holanda.
 
Mas, já me aventurei demais pelas praias da psicanálise, da sociologia, da psicologia social e dos estudos sobre consumo e, pior, sem formação suficiente e conhecimento prático para “nadar” tão longe. Que essas palavras sirvam de conforto para aqueles que perderam seus entes queridos e todos nós que sentimos, cada vez mais perplexos, a violência explícita e banalizada bater em nossas portas, quer seja nas escolas, quer seja nos novos templos: os shoppings centers, esses trágicos (no sentido grego de tragédia) locais de consumo e de vida e morte severina. Por mais que a catástrofe nos paralise, acredito piamente que quando desenvolvemos a capacidade de refletirmos criticamente sobre nós mesmos e nossos atos, já estamos dando um passo em direção a uma realidade diferente, quiçá melhor. Esses são meus votos para buscarmos alento diante das inocentes pessoas imoladas pela violência contemporânea.

Publicação original: TEODÓSIO, A. S. S. Morte e Vida Severina. Hoje em Dia, Belo Horizonte, p. 15 - 15, 28 abr. 2011.

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