quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

O corpo sob o sol: dominação, exclusão e espetáculo

O tema deste artigo estava em suspenso há algum tempo. Já faz alguns meses desde que, pulando de um canal para outro na televisão a cabo, o olhar se fixou numa imagem insólita: corpos nus, sujos, maculados pela fome e pelo sol, eram carregados por outra coleção de corpos; esses viris, fortes, moldados pela mais perfeita disciplina da atividade física, que só a riqueza pode proporcionar. Em comum, tinham o fato de serem humanos e estarem nus ou seminus. O cenário de fundo é uma praia espanhola. Os figurantes desse holocausto pós-moderno são imigrantes clandestinos africanos, que se lançam ao mar em navios e viagens precárias, como alguns portugueses e espanhóis fizeram séculos antes, alimentados pelo sonho de encontrar o sonho dourado. O restante dos componentes, figurantes secundários, ocupavam nas câmeras das redes televisas globaiso espaço central: turistas europeus de férias nas cálidas praias espanholas. A miséria e as máculas dos africanos, traduzidas em seus corpos frágeis, pareciam apenas compor o cenário. No centro, os depoimentos dos solidários turistas que, tendo sido interrompidos abruptamente de seu gozo de férias, foram obrigados a se encontrar com o lado obscuro de suas sociedades: o trabalho precário, miserável e servil, que possibilita o conforto da próspera sociedade dos países desenvolvidos do velho continente.

Não sobram narrativas artísticas que denunciam o lado perverso das sociedades afluentes, até mesmo na paradigmática e teoricamente exemplar Alemanha, berço do movimento verde e da responsabilidade social. Gunter Wallarff, no premiado livro “Cabeça de Turco: uma viagem aos porões da sociedade alemã”, já havia denunciado há décadas as contradições do sonho europeu, que explora imigrantes e outras etnias. Mais recentemente, o também marcante “Coisas Belas e Sujas”, filme de Stephen Frears, desmascara o próprio corpo como mercadoria nos subterrâneos do comércio de órgãos na civilizada Londres.

É naquilo que parece não ter conexões diretas com a dominação e a pobreza, fora a de externalizar as misérias humanas, que este artigo se concentra: o corpo humano. Com o filósofo Michael Foucault, os estudos sobre poder ganham nova perspectiva. Ao eleger o corpo como objeto de análise, o pensador francês consegue ultrapassar a análise freudiana do desejo, demonstrando em sua “microfísica” do poder que a dominação não se concentra apenas nas estruturas institucionais e nos gabinetes dos totalitários. O totalitarismo se espraia por todas as esferas da sociedade, construindo uma teia no qual dominador e dominado tecem um enredo perverso, convertendo e invertendo papéis de controle em múltiplas e infinitas direções. Dominadores são dominados e desempoderados reverberam o totalitarismo sobre outros desempoderados, ao mesmo tempo em que quem manda domina e quem se deixa dominar é mandado.

O corpo em Foucault é objeto e reflexo direto da chamada “docilização”, fenômeno paradoxal e contraditório, pois ao mesmo tempo que parece potencializar os poderes e capacidades corpóreos, submete o próprio corpo a uma disciplina externa e impositiva a ele. A história da modernização seria também a história do corpo humano, carregando seus dilemas e encruzilhadas. Se na Idade Média o bom soldado era o bravo, corajoso e destemido guerreiro, no início da Era Moderna a capacidade mortífera do soldado já havia se multiplicado imensamente, não só pelos novos equipamentos de guerra, mas também pelo treinamento metódico, organizado e eficiente com base nas técnicas de matar. O guerreiro ideal agora é disciplinado, organizado, marchando alinhado com outros corpos, compondo um balé linear, que parece ter alcançado seu ápice nos desfiles de tropas nazistas e nas celebrações esportivas de massa na sociedade hitlerista. No cinema, uma cena exemplar dessa diferença definitiva é o embate entre os sujos, desorganizados e desordeiros escoceses contra os perfilados, alinhados e bem treinados soldados ingleses na aventura sanguinária de “Coração Valente”, cujo protagonista é Mel Gibson. Nada a se estranhar diante do fato desse mesmo ator americano reconstruir sua versão da história de Cristo com muito sofrimento e sangramento do corpo: tudo vira suco no caldeirão hollywoodiano.

A “docilização” dos corpos não se restringe à guerra, mas alcança o trabalho humano, sobretudo nas fábricas de produção em massa (fordistas e tayloristas) e no próprio esporte. O futebol, uma das instituições mais importantes da identidade brasileira, também replica esse fenômeno. Quem nunca ouviu ou se envolveu em um debate sobre a perda do romantismo e de uma certa ingenuidade em jogar futebol dos anos de tricampeonato, que deu lugar à objetividade, rigor físico e disciplina dos supercraques brasileiros da atualidade? Nesse turbilhão, Garrincha representa o saudosismo de uma era na qual o talento e a criatividade vinham antes da técnica, da disciplina e da eficiência.

Na sociedade do “malhar ou morrer”, o corpo se torna objeto central da dominação e amplia a “docilização” para o lazer e o entretenimento. Exercitar-se, antes de ser mais uma das atividades da vida, associada a um jeito de viver mais integral, torna-se um fim em si mesmo, tendo como objeto o corpo, sempre possível de ser melhor emoldurado e ter sua potência amplificada. Com o barateamento e a conseqüente popularização das cirurgias estéticas, bem como das utopias mirabolantes de eternização corporal da biotecnologia, o corpo deixa de ser destino e passa a ser projeto sempre inacabado. Nem os maiores hedonistas gregos poderiam sonhar com tamanho delírio biotecnológico. Além do confinamento da subjetividade no deserto do empírico, significados e significantes passam a girar em espiral empenado. O resultado é a esquizofrenia e falta de senso que verseja em corações e mentes na contemporaneidade.

Porém, a dominação dos corpos não se dá deslocada das estruturas de exploração e miserabilidade das sociedades. Aos africanos salvos na praia, depois de uma longa viagem nos modernos “navios negreiros”, resta a misericórdia dos corpos esculturais dos banhistas europeus. Depois disso, caso consigam fugir dos esquemas anti-imigração, resta a “cruz ou a calderinha”: vender seu trabalho a preços e condições miseráveis, esgotando paulatinamente a energia vital de seus corpos, ou comercializar seus próprios órgãos para corpos pretensamente superiores, empoderados e ricos. Esses corpos sim, vão tentar o sonho de serem eternos, sem nem saber que parte deles pode ter vindo dos corpos miseráveis daqueles mesmos africanos.

Publicação original: TEODÓSIO, A. S. S. O corpo sob o sol: dominação, exclusão e espetáculo. In: Circuito Notícias. Brumadinho: Circuito Notícias, ano 13, edição 156, 04/07/2007, p. 2.

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