quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Cultura e Desenvolvimento: óbvios improváveis sobre o Instituto Cultural Inhotim e a alma de Brumadinho

Dizer que a cultura é central no desenvolvimento dos povos tornou-se lugar comum. Dificilmente se encontra algum político, gestor governamental, liderança comunitária, artista ou empresário que neguem essa idéia. No entanto, o óbvio não é tão provável assim quando se analisa tanto as formas de convivência que se estabelecem na sociedade contemporânea, quanto as práticas concretas de resgate da cultura e da diversidade entre os povos.

Comum também é ouvir a lamúria recorrente de que o povo brasileiro não é afeito à cultura, enquanto do outro lado da pirâmide social os supostos “sem cultura” vêem com desconfiança a alta cultura e se entregam aos ufanismos de uma cultura de massas que apela para os ícones da brasilidade. Em Brumadinho, entre o deslumbre paralisante de uns, o entusiasmo principiante de outros tantos e a desconfiança invejosa e inferiorizada de muitos, o Instituto Cultural Inhotim é visto ora como ilha de cultura rodeada de aridez cultural, ora como ícone daquilo que Brumadinho teria se tornado, um município no qual a cultura tem papel central no viver. No cerne desse debate está o lugar da cultura na alma de Brumadinho.

Já faz algumas décadas que organismos internacionais como a UNESCO e o Banco Mundial reconhecem o papel central da cultura na melhoria da qualidade de vida, na promoção da inclusão social, no combate à pobreza e também na proteção ao meio ambiente. Mas, como indaga o economista Amartya Sen, ganhador do prêmio Nobel de economia e um dos maiores especialistas em desenvolvimento no mundo, até que ponto a tão idealizada diversidade cultural é colocada concretamente em ação no desenvolvimento? Conceber o desenvolvimento dos povos a partir da cultura, como defende o economista Ignacy Sachs, é reconhecer as soluções endógenas aos dramas e tramas de sustentar a vida no planeta, ou seja, entender que cada povo, cultura e estilo de vida local podem e devem encontrar seus caminhos para os desafios da exclusão social, autoritarismo político e degradação ambiental.

O Instituto Cultural Inhotim parece ter se tornado motivo de orgulho no discurso de muitos brumadinenses, mesmo que pouco tenham tido contato com o projeto de construção do museu. No entanto, esse sentimento pode levar alguns a menosprezarem outras formas de expressão cultural na cidade, sobretudo as vindas dos considerados pobres, inferiores e periféricos. Cabe aqui a lembrança do grande líder indígena brasileiro, Marcos Terena: “não ser moderno, não ser desenvolvido, não significa ser culturalmente ou intelectualmente pobre”. A cultura pode estar nas raízes da tradição popular, bem como nos corações e mentes dos mais altos transgressores do tradicionalismo, sem necessariamente freqüentar os salões da alta cultura.

Um dos graves problemas que envolvem a cultura na sociedade contemporânea é que tudo, realmente tudo, pode ser entendido como cultura, ao mesmo tempo em que isso pode resultar em absolutamente nada em termos de vivência da cultura. Cooperativas artesanais são consideradas cultura, o modo de se fazer política no Brasil é explicado pela tradição cultural, as vendas milionárias de bandas de axé são vistas como expressão da rica diversidade cultural brasileira, a moda assume status de cultura e por aí vai. Mas será que todas essas manifestações realmente constituem a cultura? E se constituem, qual o impacto disso na tão celebrada e idealizada cultura como eixo central da vida social? Na verdade, todas essas práticas são e não são cultura simultaneamente.

Um primeiro aspecto a ser considerado para se compreender esse paradoxo é perceber a cultura como um dos direitos que constituem a cidadania. Nesse sentido, a cultura tem um fim em si mesma e não precisa ser concebida como um caminho para se atingir outras metas sociais, também relevantes. Sem querer negar o papel da cultura na promoção da educação emancipadora, do exercício avançado da cidadania, do fortalecimento dos laços de pertencimento e solidariedade entre os indivíduos e de soluções para vários outros problemas da sociedade, cabe refletir sobre a cultura como um elemento vital para a existência dos indivíduos e das sociedades. Como sintetiza brilhantemente o cineasta Wim Wenders, “a cultura dá alma”. Para ele, essa alma não vem da economia, tampouco da política, mas sim da cultura. Nesse sentido, o Instituto Cultural Inhotim tem valor por si mesmo, independentemente do que traga de benefícios para a cidade.

Mas a política pode e deve fazer muito pela cultura. Uma dúvida que aparece é até que ponto os gestores municipais fizeram e fazem algo pela cultura em Brumadinho. O Instituto Cultural Inhotim, bem como os projetos culturais da Vale, parecem ter empurrado contra a parede os tecnocratas do município, que se viram obrigados a fazer algo pela cultura, diante das involuntárias pressões externas. Isso, como muitos dos fenômenos da cultura, é ruim e bom ao mesmo tempo. Por um lado, evidencia o imobilismo e a postura reativa da prefeitura e por outro faz algo acontecer na cultura da cidade, ainda que de forma exógena e estranha à dinâmica local, como parece acontecer com o menosprezo sistemático a alguns personagens importantes da história cultural da cidade por parte das lideranças políticas no poder.

Mas uma dúvida perdura: se a cultura está no centro de tudo e não a economia e a política, porque na esfera do mercado a cultura é posta na periferia e não no centro? Novamente, os defensores da cultura como geradora de emprego e renda vão dizer que não se pode esquecer o papel das atividades de produção e recepção cultural na dinamização da economia. Isso é uma verdade que muitos ainda insistem em não perceber, basta analisar os dados sobre a economia da cidade do Rio de Janeiro, cujo maior vetor dinâmico reside na indústria cultural. Aqui, se enuncia outra dúvida, quais os impactos do Instituto Cultural Inhotim na geração de emprego e renda no município? E dos outros projetos culturais no município? No entanto, seria um grave erro julgá-los somente pelo que geram de emprego e renda, ainda que haja fortes indícios de que isso é o que mais seduz vários burocratas municipais com pouca afinidade com a cultura.

Para Adorno e Horkheimer, pensadores da Escola de Frankfurt, um dos grandes problemas da vida contemporânea não é deixar de colocar a cultura no centro, mas é justamente colocá-la nesse centro, desfigurando a sua própria essência como campo da vida e tornando-a mais um item da lógica mercantil. O mercado capitalista teria se tornado o centro da vida social, turbilhonando e transformando tudo em produto e rentabilidade. Não é por menos que, caso se indague às pessoas no cotidiano sobre quais são os grandes artistas brasileiros, várias vão citar campões de vendas de músicas, livros, filmes, ... Mas quem disse que ser campeão de vendas é viver a cultura? Como no esporte em tempos de mercantilização, o ideal de dignidade em competir de Pierre de Coubertin dá lugar ao de vencer. O ideal de fazer a arte pela arte dá lugar à meta de ganhar muito dinheiro e bater recordes de cifras. Também não é o caso de negar a importância de se viver da cultura, recebendo remuneração digna e conseguindo expor suas obras. Conforme atesta Pierre Bourdieu, um dos avanços da sociedade capitalista foi dotar também os artistas da condição de livres trabalhadores. Mas isso tem um custo, que pode ser o de transformar a cultura em meio e não em fim em si mesma.

Nesse universo da cultura como meio, pequenas, lentas e sutis formas de transformar a produção cultural em uma indústria de mercadorias vão se instalando. Assim, o público-alvo vira cliente, a opinião pública se transforma em indicador de qualidade e as platéias lotadas são vistas como sinal de democratização da cultura. Tudo isso em nome das melhores intenções de viabilizar mostras, materializar projetos, publicar, ... Mas o que dizer da arte transgressora, que também alimenta a alma? O que dizer da obra que incomoda e leva as platéias não à diversão, mas à catarse, à sensação de deslocamento? A arte e a cultura se prestam ao entretenimento, mas não se resumem e não podem se resumir a ele, sob pena de sucumbirem.

Por outro lado, não cabe falar de cultura nas lamúrias típicas do saudosismo tradicionalista e do medo catastrofista da hegemonia dos mercados. A tão citada e tão pouco compreendida globalização não é somente o incremento de transações comerciais, mas também do reconhecimento de outras culturas e modos de vida, mas não da forma superficial e fugidia que se manifesta, por exemplo, no chamado turismo cultural. O filósofo esloveno Slavoj Zizek mostra que nesse mundo de múltiplas culturas, os turistas querem contatar outras culturas, mas sem interagir efetivamente com elas. Querem assistir a um espetáculo de dança do ventre, por exemplo, mas sem levar o pacote completo da cultura em alguns países islâmicos, que passa pela dominação masculina e pela repressão brutal à liberdade sexual. Sendo assim, antes de se deixar impressionar pelo grande fluxo de pessoas ao Instituto Cultural Inhotim, deve-se pensar em como esses turistas culturais interagem com o museu e seu entorno. Infelizmente, com um ar de inveja paulistana, algumas análises sobre o Instituto Cultural Inhotim na Folha de São Paulo denotam o completo desconhecimento da cultura e da realidade brumadinense, afirmando que uma ilha de arte moderna está rodeada de miséria. Miséria, na visão de Sen, Morin, Sachs e uma série de outros que discutem desenvolvimento não se resume a pobreza. Pode haver pobreza no entorno do Instituto Cultural Inhotim, mas não necessariamente miséria, sobretudo a miséria da alma de que tanto fala Emile Zola.

Reconhecer a diversidade cultural implica em alteridade, capacidade de se colocar no lugar do outro, ou melhor, parafraseando Wim Wenders, se colocar na alma do outro. Com isso, se reconhece o caráter único de cada cultura, mas ao mesmo tempo se assume a igualdade entre os povos. Como destaca o pensador francês Edgar Morin, viver a diversidade cultural não é estacionar as culturas em torno de si mesmas, alimentando o sonho grandiloquente de se pertencer a uma cultura superior, mas é reconhecer a igualdade de condições perante a heterogeneidade, pois a própria idéia de diversidade não implica em hierarquização. Assim, não basta promover apenas o encontro entre diferentes tradições culturais, que muitas vezes aparentam vitalidade cultural, mas na verdade podem não dialogar e se descobrir uma na outra. O que é urgente se pensar sobre a presença do Instituto Cultural Inhotim na cidade, fugindo das visões esteriotipadas citadas antes, é até que o ponto o Instituto Cultural Inhotim dá alma a Brumadinho e até que ponto Brumadinho dá alma ao Instituto Cultural Inhotim.

Assim, a virtude cultural pode estar dentro dos portões do Instituto Cultural Inhotim, bem como fora deles, ao mesmo tempo que pode não estar em lugar algum. É hora de se aventurar nessas descobertas sem complexo de inferioridade, nem tampouco ufanismo com a grandiosidade das obras do museu. E o melhor de tudo é que a cultura pode estar bem no cerne da alma de Brumadinho, quer seja em uma folia de reis, nos fuscas coloridos do museu ou na centenária banda de música. Cada um ao seu modo e com seu lirismo próprio parecem convidar a todos para essas descobertas, ecoando outra máxima de Wim Wenders: “Os prodígios de todas as artes não residem no explícito, mas nas entrelinhas!” É esse o Instituto Cultural Inhotim e a Brumadinho que ainda estão por ser descobertos.

Publicação original: TEODÓSIO, A. S. S. Cultura e desenvolvimento: óbvios improváveis sobre o Inhotim e a alma de Brumadinho. In: Circuito Notícias, ano 13, no. 158, 02/08/2007, pp. 6.

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