quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A Inteligência e a Gestão

O mundo moderno, quase que invisivelmente, tem capitulado diante de um movimento, consciente e inconscientemente construído e difundido por indivíduos e instituições, que surgiu com a melhor das intenções: dar um caráter mais livre e pragmático aos projetos de desenvolvimento da sociedade e de seus membros. Tal perspectiva é chamada de Gerencialismo e se instalou com mais intensidade em diferentes formas de exercício do poder a partir da chegada ao comando da sociedade dos defensores do neoliberalismo econômico. Expoentes políticos desse pensamento foram Ronald Reagan e Margaret Tatcher, alçados ao governo dos EUA e da Inglaterra no final dos anos 70.

O ideário neoliberal, com seu verdadeiro credo defensor do estado mínimo e da defesa de liberdades incondicionais frente aos controles governamentais, trouxe também o sonho de um gerenciamento mais avançado e efetivo tanto das empresas, quanto dos governos, dos movimentos sociais e das próprias organizações não-governamentais. A partir daí, a gestão, que sempre foi um meio ou recurso técnico desenvolvido pela sociedade para atingir seus objetivos, começa a se tornar gradativamente um fim em si mesmo. Como argumenta o professor sloveno Slavoj Zizek, no mundo contemporâneo a gestão passa a permear todas as esferas da vida em sociedade e tudo se transforma apenas em uma questão de desenvolver boas práticas e técnicas gerenciais. A criatura passa a devorar o criador: a sociedade que criou a gestão para buscar o “bem viver”, como diriam os gregos antigos, agora se vê escravizada por ela, tendo seus sonhos dominados pelo profetismo pragmático gerencialista. Apenas sonhar talvez não seja o caminho para se efetivamente transformar a vida em sociedade. No entanto, realismo extremado pode levar a se perder a capacidade de transcendência e emancipação humana, capitulada diante dos graves problemas do mundo.

Não é de causar espanto que tecnocratas do gerenciamento afirmem com naturalidade que a boa gestão, entendida como uma atividade eminentemente apolítica e científica, deva ser aplicada a todas as formas de vida em sociedade, inclusive na esfera íntima. Exemplos desses devaneios gerencialistas podem ser encontrados tanto no professor de Administração que acredita que técnicas de orçamento empresarial precisam ser aplicadas na vida familiar, quanto nos profissionais de recursos humanos que defendem o planejamento da vida profissional e a formação de redes de contatos ou no consultor de gestão que acredita que namoros, casamentos e brigas seriam melhor equacionados através de estratégias de negociação comerciais.

Alguém pode estar se perguntando se isso realmente existe ou, caso exista, seja levado a sério. Infelizmente, bom senso é algo que anda em falta no universo da gestão. Os primeiros a comprar essas idéias, palestras, livros e consultorias são os próprios senhores do gerenciamento contemporâneo: os grandes executivos de empresas privadas, os alto-gerentes governamentais e os líderes de grandes organizações não-governamentais. Isso é o que levou o sociólogo francês Pierre Bourdieu, em palestra dirigida a homens de negócios do setor de mídia, a indagar: “Senhores do mundo, vocês têm domínio do seu domínio?”. O fenômeno é tão sério e preocupante, que dois jornalistas da prestigiosa revista The Economist, especializada em negócios, criaram a expressão “Indústria de Teorias da Administração”, que na sua versão tupiniquim foi chamada pelo professor Tomaz Wood Jr. de “Pop Management” (“Gerenciamento Pop”).

Independente do grau de maturidade profissional e de adesão inconsciente ou conscientemente mal intencionada à essa indústria de macaquices gerenciais, os impactos sobre o imaginário social são grandes. O espaço da vida em sociedade vai cedendo lugar lentamente à perspectiva do mercado, a emoção e as utopias vão dando lugar ao pragmatismo, as amizades vão se transformando em contatos para fins profissionais e as realizações tornam-se apenas uma questão de métrica entre o que se detém de recursos, principalmente financeiros, e aquilo que se pode fazer.

O problema é que as grandes conquistas da humanidade foram feitas por homens que colocaram a inteligência à frente da gestão e não o contrário. Foram eles que quebraram paradigmas e pensamentos arraigados e mostraram ao mundo a importância de se sonhar para além do tamanho da extensão do passo humano. Infelizmente, os gerencialistas querem transformar tudo em boa gestão, inclusive o exercício da política, ou melhor, do bom governo, como diria Maquiavel. Mas as utopias não morrem, nem se deixam acorrentar pelo pragmatismo gerencialista. Para fechar, apenas um bom exemplo disso. Zilda Arns, líder da Pastoral da Criança no Brasil, tem conseguido combater com efetividade o grave problema da desnutrição infantil utilizando poucos recursos financeiros e colaboradores sem grande qualificação formal, além de tecnologias artesanais (soro caseiro). Esse é um exemplo vivo de que, caso a sociedade e os indivíduos se fiassem somente no mantra gerencialista, esse grave problema social brasileiro talvez não caminhasse para a extinção de forma tão simples, criativa e efetiva.

Publicação original: TEODÓSIO, A. S. S. A inteligência e a gestão. In: Circuito Notícias, ano 13, 01/2007, p. 2.

Nenhum comentário:

Postar um comentário