quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Entre Tragos e Baforadas: a cortina de fumaça que paira sobre a irresponsabilidade socioambiental da indústria do fumo

Nos anos 50 e 60 nos Estados Unidos, a ainda hoje poderosa indústria do fumo americana tinha a audácia de veicular propagandas com jovens e adolescentes fumando e com a mensagem (implícita e às vezes explícita) de que cigarros mentolados traziam bom hálito e que, portanto, seriam bons para a saúde.

Nas décadas subseqüentes, uma luta intensa e, muitas vezes desleal, entre associações médicas e grupos de afetados pelos males do fumo versus a indústria do fumo, colocou no centro dos debates os impactos negativos do cigarro para o corpo humano, sobretudo sua contribuição para o câncer de pulmão. Apesar de ser quase impossível encontrar um leigo ou mesmo um especialista de saúde que afirmasse que o cigarro não causava câncer, os produtores de cigarros lutaram bravamente na justiça americana contra os processos indenizatórios de clientes prejudicados pelo fumo. O argumento básico era de que as pesquisas científicas não comprovavam esses malefícios.

O filme “O Informante”, do diretor Michael Mann, com Russell Crowe e Al Pacino, narra a história, baseada em fatos reais, de um ex-executivo da indústria do fumo americana que quebra o contrato de sigilo que os dirigentes dessas empresas são obrigados a assinar. Um suposto ato antiético (romper um contrato assinado) é, na verdade, o início de um grande processo de abertura e democratização das informações ao público em geral, no qual ficaria evidente que a indústria do fumo alterou resultados de pesquisas científicas que indicavam claramente a associação entre fumo e câncer de pulmão. A ética venceu o moralismo. No entanto, alguns argumentam que as pesadas indenizações pagas pela indústria do fumo americana não chegaram a sacudir os sólidos pilares financeiros dessas empresas e que, no final das contas, o impacto foi quase nulo em termos da sustentabilidade competitiva desse setor.

A partir do endurecimento da legislação contra o fumo nos países centrais (EUA e Europa Ocidental), as indústrias de cigarro passaram a voltar seus esforços de marketing para países em desenvolvimento, nos quais a legislação ainda é frouxa, tendo como público-alvo preferencial a juventude. As restrições contra o fumo avançam em todo o mundo e até mesmo países que sempre se caracterizaram por grande liberalidade e uma certa “cultura do prazer de fumar”, como a Espanha, começam a criar legislações pesadas sobre o tabagismo em lugares públicos.

Nessa nova fase de maior controle social sobre o tabaco, algumas empresas e marcas apelam para slogans como “a escolha é sua”. No entanto, a suposta liberdade de escolha é sempre relativa em uma sociedade de consumo de massa, publicidade agressiva e estímulo ao consumismo. A escolha nunca é somente do indivíduo, quando de bar em bar e padaria em padaria cartazes luminosos oferecem o prazer das tragadas, enquanto as fotos mostrando os horrores do fumo são sempre minúsculas e, muitas vezes, insistimos em não encará-las de frente. Não quero com isso negar a responsabilidade de quem decide fumar, mas dizer que ela não reside apenas no fumante. A idéia de liberdade de escolha do consumidor traz implícita a perspectiva de que os malefícios do fumo são de responsabilidade do próprio cliente. Essa é uma perspectiva polêmica, incorreta e distorcida da realidade. A responsabilidade empresarial envolve não apenas um elo da cadeia de produção e consumo, o consumidor, mas todos aqueles que participam das diferentes etapas de produção, distribuição, consumo e descarte do lixo gerado. Se isso fosse verdade, as indústrias de pneus, baterias e óleos lubrificantes, para citar algumas, não seriam responsáveis por todo o ciclo de vida dos produtos, ou seja, não só pela sua produção e distribuição, mas também pelo recolhimento e adequado tratamento dos produtos gastos e descartados.

Nessa perspectiva é que reside um dos graves problemas de irresponsabilidade social da indústria do fumo, que ficam encobertos pela névoa da discussão sobre os males da nicotina e do alcatrão à saúde humana. Não se trata de negar que esses malefícios são graves e exigem respostas ainda mais duras da sociedade. Os problemas decorrentes do fumo atingem não só fumantes diretos e indiretos, mas toda a sociedade, visto que quem financia os gastos públicos com tratamento de saúde e campanhas anti-tabagismo são os contribuintes de impostos. No entanto, é bastante cômodo para a indústria do fumo focar a discussão e a atenção social nos males do cigarro contra a saúde, pois, no final das contas, ela pode se proteger no argumento da livre consciência do consumidor em fumar ou na tentativa de desenvolvimento de novas tecnologias produtivas que gerem cigarros menos nocivos aos seres humanos.
A irresponsabilidade social e a insustentabilidade ambiental que a indústria do fumo não consegue encobrir vem do próprio modelo de negócio estabelecido por essas empresas em várias partes do mundo. A cadeia produtiva do fumo envolve em sua base milhares de pequenos agricultores em comunidades com baixíssima qualidade de vida. Os argumentos de que o fumo gera empregos, riquezas para pequenos produtores rurais, não agride tanto o meio ambiente e alimenta cofres públicos com impostos não conseguem fazer frente aos sérios problemas que se encontram logo na produção de tabaco.

As estratégias de gestão da cadeia de produção-distribuição-consumo de fumo relevam problemas gravíssimos como: 1 – monocultura de tabaco, destruindo a biodiversidade; 2 – monopsônios ou oligopsônios, ou seja, um único ou alguns poucos grandes compradores com pesado poder de barganha sobre milhares de pequenos produtores, resultando em preços de compra achatados; 3 – conseqüências sociais perversas sobre comunidades e pequenos produtores, tais como dependência de uma única atividade econômica na região, trabalho infantil, fome e miséria nas áreas plantadoras; 4 – graves problemas de lixo urbano e resíduos gerados pelo fumo desenfreado e mal-educado em áreas públicas (para muitos, já se tornou redundância dizer que fumantes são mal-educados, pois além das baforadas que afetam a todos, jogam “guimbas” em qualquer lugar); 6 – relação dúbia, mal comprovada e eticamente questionável entre impostos gerados pelo fumo e gastos com saúde pública no combate ao tabagismo e seus males.

Esses são problemas que os grandes impérios do fumo não conseguem encobrir e mostram que a sua irresponsabilidade socioambiental pode ser mais perversa do que os já muitos graves problemas com a saúde dos fumantes revelam para todos nós. A questão é que o foco apenas nos problemas de saúde pode levar a uma verdadeira cortina de fumaça, encobrindo e outros e tão graves males para além de uma tragada, que, ao contrário do que muitos dizem, nunca é uma “simples tragada”.

Publicação original: TEODÓSIO, A. S. S. Entre Tragos e Baforadas: a cortina de fumaça que paira sobre a irresponsabilidade socioambiental da indústria do fumo. In: Circuito Notícias, Brumadinho, MG, abril/2007.

Nenhum comentário:

Postar um comentário