quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Cidadania em Migalhas?: as possibilidades e as armadilhas do voluntariado

Voluntariado é um fenômeno contemporâneo extremamente relevante, pois é resultado de várias tendências da vida em sociedade que tentam reverter o individualismo, a fragmentação e a destruição das comunidades e da própria vida humana no planeta. Brumadinho, como um entre os milhares de pequenos municípios no Brasil, sempre teve trabalho voluntário. Mas, agora, é que a grande mídia reverbera a idéia de voluntariado e muitos que sempre ajudaram os outros (ou o próximo, como se diz nos cultos religiosos), agora são chamados de voluntários e se identifiquem como esse papel social. Além disso, é típico de grandes empresas, sobretudo aquelas com atuação no mercado internacional, estimular (muitas vezes até em excesso, beirando a imposição ou obrigação) seus funcionários a prestar trabalho comunitário. O caso de nosso município não é diferente de muitos outros, sendo assim, é fundamental tentar compreender o que pode e o que não pode oferecer o trabalho voluntário.

Outros conceitos e tendências que estão relacionados ao voluntariado são Capital Social, Comunitarismo, Associativismo e Cidadania Ativa. Na verdade, solidariedade e laços fortes de associativismo sempre existiram ao longo da história da humanidade, no entanto, o conceito de voluntariado integra a idéia de solidariedade com a de ativismo ou pro-atividade na luta contra os problemas sociais e ambientais que afligem as sociedades. Os voluntários se caracterizam não apenas pela consciência dos problemas sócio-ambientais, mas atuam e contribuem, de diferentes formas, para a solução desses desafios, sem esperar necessariamente o suporte governamental ou empresarial privado.

Diferentes fatores levam os indivíduos a se dedicarem ao trabalho voluntário. É um grande equívoco imaginar que se trata apenas de uma "vontade desinteressada de ajudar". Existem ganhos afetivos, simbólicos, emocionais, materiais não-monetários e até profissionais para quem se torna voluntário. Esses ganhos e estímulos, em muitos casos, reforçam o comprometimento do voluntário com as atividades sociais e com as instituições nas quais atua. Em outros casos, esses ganhos vêm na frente do espírito de solidariedade, invertendo a equação que diz “ajudar os outros e acabar sendo ajudado” para a lógica “ajudar a mim mesmo, ajudando os outros”. Esse tipo de postura é comumente encontrado em alunos de graduação, interessados em adquirir experiência profissional e em trabalhadores que vêem no voluntariado uma boa forma de alcançar mais pontos na avaliação de desempenho da empresa e poder galgar postos mais elevados na hierarquia.

Infelizmente, há empresas que “obrigam” seus funcionários a fazer trabalho voluntário e, além disso e pior ainda, não os liberam no horário de trabalho, nem apóiam suas iniciativas sociais com recursos materiais e financeiros. No entanto, houve muitos avanços do Voluntariado Empresarial no cenário brasileiro, especialmente em Minas Gerais, devido a uma maior especialização e profissionalização das iniciativas de trabalho voluntário dentro das empresas. Chama-se de voluntariado empresarial as iniciativas de ação social de funcionários que são criadas, estimuladas e/ou apoiadas pelas empresas. O Núcleo de Cidadania Empresarial da FIEMG e as fundações empresariais vinculadas ao Grupo de Institutos, Fundações e Empresas (GIFE) são exemplos de grupos virtuosos de voluntariado empresarial. Um desses avanços, conquistados depois de várias tentativas de acerto, foi descentralizar a responsabilidade pelo gerenciamento dos programas de voluntariado da cúpula diretiva das empresas para os indivíduos mais envolvidos com a ação social. Em inúmeros casos, funcionários de nível operacional passaram a comandar os programas de voluntariado empresarial, além de contarem com um significativo apoio financeiro e material de suas empresas. Os programas se tornaram mais participativos, transparentes e com maior impacto social. Um grave problema é que  muitas empresas tentam seguir as líderes de mercado sem desenvolverem um compromisso efetivo com a transformação sócio-ambiental e sem desenvolverem capacidade gerencial para elevar os níveis de excelência de suas práticas de voluntariado.

Todos os dados indicam que o problema do voluntariado no Brasil não está ligado à quantidade de pessoas que atuam ou desejam atuar como voluntárias. As pesquisas sobre mobilização social, ativismo comunitário e consumo consciente têm indicado que os indivíduos têm se tornado cada vez mais preocupados e atuantes quanto aos problemas sócio-ambientais no Brasil. O desafio dos programas de voluntariado neste momento é avançar nos impactos sociais que podem gerar para a transformação da realidade brasileira e global. Ainda há muitas ações descontínuas, pouco efetivas e desprovidas de maior nível de conscientização cidadã sobre os problemas que afetam as sociedades. Toda ação social é sempre uma intervenção política, não no sentido de partidarismo ou politicagem, mas de “visão de mundo” negociada e compartilhada por um grupo de pessoas. Muitos voluntários ainda estão focados excessivamente na solução de problemas pontuais, como por exemplo, dar banho no idoso, e se envolvem muito pouco ou nada com os problemas estruturais do país, que estão relacionados às políticas públicas. Com isso, não se avança na implantação e cumprimento do Estatuto do Idoso, perpetuando-se a sua exclusão.

Falta avançar na cultura democrática, promovendo decisões participativas, transparência e controle social de organizações não-governamentais, governos e empresas. Sem isso, toda a movimentação social que o voluntariado brasileiro tem gerado pode não resultar em impactos transformadores de longo-prazo. Assim, o trabalho voluntário pode acabar criando uma forma mais perversa de cidadania, a “Cidadania em Migalhas”, na qual se sobressaem as iniciativas dos indivíduos em tapar “buracos” deixados pela inoperância e descaso do Estado e das empresas,  oferecendo apenas serviços sócio-ambientais concretos e localizados (creches, parques,  atividades ambientais, ...), mas sem lutar por causas sócio-ambientais mais amplas e estruturais do Brasil e do mundo, que envolvam mobilização política, discussão comunitária e mudança de orientação de voto.

É muito comum as pessoas quererem ajudar, mas não saberem como fazê-lo. Em muitos casos, esse argumento é uma justificativa para o comodismo. Em outros casos, falta informação e conhecimento sobre a dinâmica dos problemas sociais. Por outro lado, o ativismo social precipitado pode reproduzir os problemas históricos e trágicos da intervenção social brasileira: assistencialismo, paternalismo, personalismo, centralismo tecnocrático, descontinuidade, clientelismo, mal uso de recursos e baixíssimo impacto social. Para aqueles que querem dar os primeiros passos como voluntários, é interessante não esquecer de: 1- dialogar de igual para igual com a comunidade, sem impor seus desejos, visões e vontades àqueles que vão ser auxiliados; 2 – compreender que os problemas sociais são complexos e suas soluções não se dão na mesma velocidade e dinâmica dos negócios empresariais; 3 - desenvolver sempre pequenas ações continuadas, mas crescentes, no lugar de grandes intervenções esporádicas na realidade social; 4 – somar força a outros projetos e pessoas que já atuam na área ou invés de criar algo novo e superposto às atividades já existentes; 5 – transformar sua postura e prática no cotidiano e não apenas ser solidário no momento de ação voluntária; 6 – não se restringir a fazer a sua parte, mas cobrar dos responsáveis a sua parcela de contribuição para a erradicação dos problemas sócio-ambientais, sobretudo do governo e das empresas. Agora, fica a clássica pergunta do filme Ben Hur, quo vadis? O que você vai fazer por Brumadinho, o Brasil e o mundo?

Publicação original: TEODÓSIO, A. S. S. Cidadania em Migalhas?: possibilidades e armadilhas do trabalho voluntário. In: <strong>Circuito Notícias</strong>. Brumadinho, MG: março/2007.

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