quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

A Estudante Desesperada e a Serendipidade

Costumo abrir minha primeira aula com uma pergunta que cansei de ouvir dos alunos e também nas histórias contadas pelos professores nos intervalos para o café: “Professor, o senhor não trabalha, não?! Apenas dá aulas?!”. Antes que alguém me venha com essa lengalenga novamente, já solto a pergunta e a resposta de uma só vez: “Sim, meus caros alunos, apenas dou aulas. Sou um sobrevivente de uma espécie em extinção: os vagabundos acadêmicos. Não gosto de trabalhar, apenas de lecionar, pesquisar, escrever textos e dar palestras. Afinal, trabalhar é muito chato e cansativo!”.

Essa indagação, que insiste em se repetir semestre a semestre, turma a turma, mesmo mudando as escolas, os alunos, o tipo de curso (extensão, graduação ou pós-graduação) e a área de formação, diz muito a respeito do que se transformou a educação em nosso país. Depois de várias eleições, a educação parece agora ter assumido o lugar central das agendas dos candidatos à presidência da república. Tenho sérias desconfianças acerca desse repentino interesse pela formação de nosso povo, justamente às vésperas do pleito eleitoral e, mais ainda, em um momento no qual as políticas sociais, de segurança pública, de saúde, de desenvolvimento econômico e de proteção ambiental mostram claros sinais da tradicional combinação tupiniquim de ineficiência com descaso político, incompetência e falta de criatividade. Esperar tudo da formação e da cultura de um povo, ainda que esses sejam aspectos centrais de sociedades mais jutas e igualitárias, é esperar muito da educação, que por si só não mudará o Brasil. Novamente surge o paradoxo: a causa é também a solução milagrosa de todos os problemas nacionais.

Não vou discutir o descaso com as condições de trabalho dos professores que, se já são ruins no ensino superior, são vergonhosas nos níveis de ensino anteriores. Nesse ponto, todos os envolvidos têm alguma razão e existem muitas irracionalidades. É assustador constatar que muitos de nossos educadores não conseguem sequer “consumir” a cultura de maneira compatível com importante papel que desempenham como formadores das gerações presentes e futuras. No entanto, as péssimas condições salariais, de infra-estrutura e de metodologia de trabalho não podem servir de desculpa para o comodismo, a falta de entusiasmo e a incompetência, que muitos docentes desenvolvem com maestria a cada dia, mais e mais, dentro das salas de aula. Porém, vou me concentrar em um universo mais específico e reduzido, porém não menos complexo: a sala de aula e o processo de ensino-aprendizagem.

Vivemos em uma época em que várias esferas da vida em sociedade se transformaram em mercadoria. Não é estranho ouvir dizer que o aluno é cliente do ensino, principalmente dos cursos superiores. Infelizmente, se já não traz estranheza aos ouvidos esse outro despropósito (o aluno como cliente), é importante que continuemos nos indignando ao nos defrontarmos com essa idéia, que não passa também de uma lengalenga. Se há um cliente no ensino, esse cliente é a sociedade, que outorgou às instituições públicas e privadas de ensino, através do Estado, o direito e a honrosa tarefa de formar seus cidadãos e futuros profissionais. Isso não quer dizer que o desrespeito, a falta de qualidade e o autoritarismo devem se fazer presentes nas relações que o aluno estabelece tanto com a escola, quanto com os professores. Nada justifica o autoritarismo com que muitos professores tratam os alunos, bem como o descaso e o desrespeito de muitos alunos para com seus mestres no dia-a-dia.

Mas o ponto mais importante nessa discussão é o que vem implícito na idéia de aluno-cliente. Atrás dessa concepção se escondem as falsas verdades de que educação é uma mercadoria ou serviço como outro qualquer e que o seu “consumo” deve se dar dentro dos padrões de qualidade de qualquer atividade mercantil. Dentro dessa perspectiva, o processo de ensino-aprendizagem tem que ser sempre divertido, interessante, veloz, lúdico, animado, etc., etc., etc. A lista de boas qualidades não acabaria nunca e, na ânsia por agradar a “gregos e troianos” dentro das salas de aula, os educadores acabam perdendo o próprio sentido do processo educativo, se tornando reféns de seus clientes: os alunos.

Educação não tem que ser apenas um processo divertido e lúdico, como muitos pedagogos pseudomodernos (geralmente comportamentalistas) insistem em repetir a cada reunião de professores. Educação também se faz com “sangue, suor e lágrimas”. Tal qual a obra de arte, que pode tanto deliciar os sentidos quanto causar mal-estar e incômodo, a educação realmente transformadora tem como papel central levar à formação crítica e autônoma dos indivíduos. Não fosse assim, trabalhos dos grandes mestres da pintura, para dar exemplos apenas em um dos campos da cultura, deveriam ser esquecidos. Picasso e outros tantos seriam figuras patéticas de um passado a ser sepultado em Guernica. Mas as coisas não são e não podem ser assim. Tal qual a arte que traz estranhamento, dúvida, perplexidade e indignação, bem como vontade de superar esse labirinto, a educação tem também como papel central levar o aluno a se encontrar consigo mesmo, encarando seus medos, fantasmas e dúvidas. Convenhamos, isso não é nada agradável e “gostoso”, mas nem por isso deixa de ser fundamental para se aprender a viver. Caso contrário, tem-se paternalismo educacional travestido de “foco no cliente”. Tal qual a arte, a educação imita a vida. Se formos pais protetores em excesso, criamos “filhinhos de papai”, como costumamos dizer, incapazes de viver a vida em sua plenitude tanto nas boas horas, quanto nos momentos difíceis.

Há algum tempo recebi uma mensagem de uma aluna dizendo que, quanto mais estudava, mais se sentia perdida e mais percebia que nada sabia. Respondi a ela: “você está aprendendo e muito, só não se deu conta disso ainda”. Aprendizagem requer dedicação, concentração e horas de meditação e estudo; coisas que no nosso mundo cheio de informação e sedução de cores e tons exige do aluno muita abnegação. Mas, depois de um tempo, nos acostumamos com o “fardo” de aprender e, como que repentinamente, o mundo se abre com novas cores, tons, cheiros e sabores, muito mais vibrantes do que os anteriores. O mundo não mudou, nosso olhar se transformou. Os estudiosos chamam de Serendipidade a todo esse processo de descobertas inusitadas: a capacidade de encontrar novas respostas através de formas aparentemente inesperadas e não programadas, que só o olhar calejado pelo estudo e pela vida podem oferecer. A cada aula tento renovar minha crença na perspectiva de que “toda forma de educar vale a pena”, desde que leve à Serendipidade. 

Publicação original: TEODÓSIO, A. S. S. A estudante desesperada e a serendipidade. In: Circuito Notícias, Brumadinho, p. 2 - 2,  30 ago. 2006.

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