quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Céu, Terra e Inferno Políticos

“Existem mais coisas entre o céu e a terra que a nossa vã filosofia pode supor!”

Essa epígrafe shakspeariana já foi usada e abusada por um cem número de pessoas, com um cem número de intenções. Ainda assim, acho que ela retrata bem o momento político em que nos encontramos no país e, em especial, na cidade de Brumadinho.

Para muitos, os recentes escândalos políticos da base aliada do governo são a pura prova que a política é “briga de cachorro grande”, marcada por lutas e confrontos que exigem posturas e práticas pouco éticas. O jogo político assim o seria. Ao cidadão comum, que do nível da terra observa a luta entre os titãs políticos, só caberia a contemplação, a submissão e a aceitação desses esquemas.

Os partidários dessa tese, não raras as vezes, recorrem a Maquiavel, na tentativa de legitimar uma prática política nefasta. No jogo do poder não haveria espaço para a inocência. Na verdade, trata-se de uma grande deturpação das idéias do pensador italiano. O governante para Maquiavel sabe se valer da força e jogar duro na luta política, mas em consonância com as aspirações populares e o bem para o “espaço público”. Tanto que Renato Janine Ribeiro, na minha opinião o maior filósofo brasileiro contemporâneo, insiste em destacar o caráter democrático dos escritos maquiavelianos.

Para outros, e nesses outros eu me incluo, a frase de Shakspeare serve para nos alertar que muito ainda temos que caminhar em direção à transparência do funcionamento da política no nosso país. Quando olhamos para a realidade de nosso município, esse abismo entre a luta dos “deuses políticos” e a plebe com os pés ficados na terra parece ainda maior e assustador.

Parte considerável da mídia, ao fazer a cobertura desses episódios políticos, tem recorrido ao caráter pessoal, à trajetória de vida e às habilidades políticas de Lula como legitimadores de sua permanência na presidência. Não há como negar que a presença de Lula no poder tem um impacto decisivo na ruptura simbólica e ideológica de uma maneira de enxergar a política, que no Brasil sempre colocou o pobre no lugar de desempoderado. Pobreza material, na maioria das vezes no nosso país, vem acompanhada de pobreza política. Mas não precisa, nem deve ser assim.

No entanto, depositar em Lula todas as esperanças de superação dessa crise é, paradoxalmente, reforçar a mesma lógica que teima em insistir que uma elite deve defender os interesses dos pobres. Teorias da “vanguarda proletária” e da “expertise”, ou seja, dos grandes líderes comandando a massa, remontam ao início do século XX e resultaram, dentre várias experiências, no centralismo soviético, no autoritarismo chinês ou mesmo no elitismo político da Europa capitalista.

Weber, importante sociólogo alemão do início do século XX, enxergava na figura do líder carismático, tal qual Lula hoje se apresenta para a maioria do povo brasileiro, a saída para os descontroles de uma máquina pública fechada em si mesma e distante dos interesses do povo. Não se deve perder de vista a importância de um líder visionário para mudar os rumos das estruturas corrompidas e caducas. No entanto, vivemos em um país e uma cidade nos quais a personalidade dos políticos sempre virou personalismo. Um país e uma cidade nos quais o direito virou favor, o dever se transformou em punição dos adversários políticos e a transparência da máquina pública em mero formalismo contábil, quando existe.

Precisamos sim, de lideranças fortes e renovadas, capazes de superar a crise política que se apresenta. Mas precisamos também de novas e mais dinâmicas formas de organização e participação popular na gestão pública. Não partilho a visão pessimista de muitos, que retomando o cientista político alemão Robert Michells, crêem que todos os movimentos sociais um dia acabam cedendo à “Lei de Ferro das Oligarquias”: viram máquinas políticas ensimesmadas, fechadas e distantes do povo. Creio, pelo contrário, que as experiências democráticas construídas no país nos últimos anos reinventaram cotidianamente novas formas de superar o dilema michelliano.

No entanto, nuvens tenobrosas se aglomeram em nosso horizonte. Uma recente pesquisa internacional mostrou que na América Latina mais de 48% da população não se importaria com o retorno da ditadura, desde que as condições de vida avançassem. Ainda que metodologicamente a pesquisa esteja bastante equivocada, pois compara “alhos com bugalhos” ao opor democracia à qualidade de vida, quando o oposto de democracia é a ditadura, os resultados não podem passar despercebidos. Esses resultados são decisivos, sobretudo quando se pensa no futuro político de Brumadinho.
Os recentes escandâlos políticos nacionais podem parecer, para muitos dos brumadinenses, episódios distantes do cotidiano da cidade, com pouca ou nenhuma repercussão mais relevante em nossas vidas. Faço minha a crença do jornalista Gilberto Dimenstein. Para ele, a política se constrói no nível local, nas cidades brasileiras. E é nelas, nos últimos anos, que grande parte dos avanços políticos se fizeram no país: conselhos municipais, orçamentos participativos, dentre inúmeros outros esquemas de controle social da máquina pública, são exemplos vivos disso.

Mas, ainda assim, muitos em Brumadinho teimam em apedrejar a “viúva adúltera petista”, sem olhar para os seus próprios pés. A história política fez do brasileiro um indivíduo capaz de responsabilizar a tudo e a todos pelas agruras que vive no seu sofrido dia-a-dia. Essa política que aí está foi construída por nós e por nós, sociedade civil organizada, precisa ser radicalmente modificada. Estamos dispostos, em Brumadinho, a abrir mão de nossa cômoda posição de expectadores e não tolerarmos mais mandos e desmandos na política?

Por onde andam as jovens lideranças no nosso país e na nossa cidade? Quais os impactos de toda a briga política em Brasília sobre o município? Alguém já parou para pensar sobre como os esquemas corruptos de Brasília se manifestam ou impactam nossa cidade?

Enquanto não pararmos de lamentar o inferno político que vivemos e não percebermos que o céu dos “deuses políticos” municipais está ao alcance da nossa mão, da mão da sociedade civil organizada e cidadã, continuaremos a viver o pesadelo do eterno retorno. Mudanças que nada transformam, como cinicamente o príncipe Tancredi, no livro “O Leopardo”, de Giuseppe Lampedusa, coloca com crueldade: “é preciso mudar se quisermos que tudo siga como está”. Não estamos na Itália revolucionária de Tancredi, mas a evolução política necessária não está nas mãos dos poderosos de sempre, está nas mãos do povo de Brumadinho.

Publicação original: TEODÓSIO, A. S. S. Céu, Terra e Inferno Políticos. In: Circuito Notícias. Brumadinho: Circuito Notícias, ano 12, edição 140, 04/2006, p. 2.

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