quarta-feira, 4 de janeiro de 2012

Gerencialismo no Terceiro Setor: a falta que faz “o porquê das coisas”

Quando comecei a me dedicar ao estudo do Terceiro Setor, há aproximadamente 10 anos atrás, incomodava-me sobremaneira o que hoje denomina-se de gerencialismo nos estudos sobre ONG´s e projetos sociais. Tal qual a expressão neoliberalismo, sua congênere no campo da gestão não é empregada pelos próprios gerencialistas, mas antes de tudo é usada pejorativamente para caracterizar uma visão que, apesar de negar sua natureza ideológica, reforça um pressuposto valorativo, portanto ideológico, muito presente no “modo de navegação” gerencial brasileiro ou, até mesmo, em diferentes países do mundo. A perspectiva gerencialista acredita que os processos e fenômenos ligados a gestão seriam simples questões de uma boa métrica administrativa, aplicável a todo e qualquer tipo de organização da mesma forma, independentemente de seu setor de origem, e sempre com um forte apelo funcionalista, ou seja, com um sentido de “consertar” todos os problemas (disfunções) decorrentes da má operação das organizações.

Como penduricalhos dessas crenças, somam-se outras facilmente encontradas não só entre os estudiosos da gestão, mas sobretudo entre os gerentes envolvidos nas tramas e dramas das organizações, inclusive aquelas da sociedade civil ou do Terceiro Setor, como é mais usual se falar. Essa ampliação de visões de mundo relativas à gestão abre espaço para pérolas do tipo: a) qualquer gestão governamental é sempre burocrática e ultrapassada, a das ONG´s sempre improvisada e “granjeira” e as das empresas o supra-sumo da eficiência administrativa; b) mercados são esferas sempre mais competitivas e meritocráticas (ou justas) do que qualquer dinâmica construída na esfera do Estado ou da sociedade civil; c) tudo e todos na vida humana em sociedade deveriam “aprender com quem faz, os homens de negócio” (cito aqui uma fala literal que brindou meus ouvidos numa reunião de conselho de ONG), absorvendo deles o pragmatismo essencial a toda atividade humana; d) discussões e debates acadêmicos, feitos pelos pesquisadores da gestão, são meros “delírios acadêmicos”, que mais servem para construir falsos castelos de arrogância e petulância científica do que realmente gerar alguma idéia útil para resolver os problemas concretos das organizações, sobretudo as do Terceiro Setor, ou melhor, sintetizando com mais uma fala que me foi dirigida de forma pouco cortês em outro congresso de ONGs: “quem sabe faz, quem não sabe ensina”.

Os problemas com esse tipo de concepção não seriam poucos, como a própria narrativa acima já deixa implícito e, longe de ser tema de interesse apenas da academia, na minha modesta avaliação dizem respeito aos próprios tempos e destemperos que vive o Terceiro Setor brasileiro atualmente. Um exemplo disso é um recente convite, dirigido a mim, para debater entre gestores de ONG´s sobre os prós e contras dessa expansão gerencialista, ou empresarial como denominaram no convite, no Terceiro Setor.

Imaginar que a gestão é um conjunto de receitas de bem fazer, como aparece com recorrência na literatura gerencial de origem norteamericana, é valorizar em demasia o “como fazer as coisas” em detrimento do “porquê tais coisas devem ser feitas”. Essa crítica, vinda do brilhante professor de uma das maiores universidades canadenses de administração, Omar Aktouf, serve para elucidar as armadilhas gerencialistas que capturaram muitas ONG´s brasileiras nas últimas duas décadas. Além disso, outro destacado professor, o brasileiro Tomaz Wood Jr., considera que a gestão contemporânea é marcada pelo simbolismo e sem que se consiga dar sentido à ação esperada e desenvolvida pelos diferentes atores que se relacionam com as organizações (empregados, comunidades atendidas, parceiros, doadores, ...), dificilmente se obtém resultados duradouros e consistentes na gestão.

Seduzidas pelo “eldorado administrativo” de usar com a máxima eficiência os recursos mobilizados, ampliar a captação de recursos, alcançar definitivamente a sustentabilidade financeira e gerar resultados inquestionáveis quanto à emancipação dos beneficiários, o Terceiro Setor brasileiro embarcou no “canto da seria empresarial” e, mais recentemente, nas promessas de parcerias ilimitadas propostas pelo Estado. Faltou nessa equação uma pergunta simples: por que gerenciar dessa forma e sob esses pressupostos?

Mas, como que passando ao lado dessa pergunta incômoda, gerentes e técnicos do Terceiro Setor foram treinados aos milhares nas primícias da gestão super moderna dos “comos”, ainda que muitas vezes dragassem lorotas que nem mesmo as próprias empresas engolem mais, como o famigerado modelo SWOT ou matriz FOFA de planejamento estratégico. Mero exercício do mais puro bom senso, o modelo SWOT, ao propor se pensar em fraquezas, forças, oportunidades e ameaças, é um belo exemplo de como gestores de ONG´s, muitos até então sem qualificação formal no campo da gestão, se deixaram levar por uma suposta proposta hipermoderna(sic) de avaliação organizacional (os primeiros modelos de planejamento estratégico datam da primeira metade do século XX) e abandonaram suas histórias de vida (e de suas instituições), com suas sabedorias práticas de gestão, em prol de soluções administrativas mitificadas. Não é a toa que outro importante professor de gestão, Henry Mintzberg, denuncia a verdadeira indústria de deformação de gestores que viraram os cursos de pós-graduação do tipo MBAs, porto seguro para a empregabilidade de muitos gerentes do Terceiro Setor e péssima opção para a efetiva modernização da gestão social.

Contra a falta de bom senso generalizada, nem é preciso recorrer a reflexões sofisticadas da academia, basta apenas remeter à própria vida cotidiana, celeiro de boas e péssimas idéias gerenciais. O problema das pessoas “sem noção”, infelizmente encontradas na gestão de inúmeras ONG´s brasileiras, é “a própria falta de noção”. Então, vamos ao “mundo da vida”, como talvez dissesse Habermas neste debate. Para tanto, devemos usar os porquês (lembro-me de meu livro de infância, “O porquê das coisas”): 1) Por que ONG´s, supostamente muito mal gerenciadas, têm melhor reputação institucional que empresas (pesquisas em vários países comprovam isso)?; 2) Por que não privatizamos tudo na vida, inclusive as relações sociais, visto que se tornariam mais eficientes? Não seria ótimo comprar relações de afeto e uma família inteira no mercado, já que tudo o comportamento egoísta dos atores nos mercados é o ideal de vida social!?; 3) Por que os grandes sabichões da gestão empresarial de mega corporações as levaram à bancarrota na última crise (não é a primeira e talvez não seja a última) do sistema capitalista?; 4) Por que depois de duas décadas de treinamento intensivo na gestão empresarial, as ONG´s brasileiras parecem viver uma crise de identidade?; 5) Por que a sustentação financeira do Terceiro Setor é sempre um porto distante, nunca alcançado definitivamente por nenhuma ONG?; 6) Por que inúmeras organizações do Terceiro Setor, ao mesmo tempo em que adotam diferentes técnicas da moderna gestão, tornam-se cada vez menos participativas, democráticas e capazes de motivar voluntários e empregados a se emprenharem no seu trabalho, o mesmo se dando na relação que estabelecem com as comunidades que atendem? Bem, vou parar por aqui, pois a lista de porquês é quase infinita.

Se você, caro leitor, conseguiu responder à esse questionário ilógico do prof. Téo (meu apelido na universidade), das duas uma: ou descortinou a “névoa” da ideologia gerencialista no Terceiro Setor ou, então, deve correr para tomar seu “gardenal gerencial” em algum MBA para poder continuar delirando sobre o “como”, sob pena de entrar em “parafuso administrativo”.

Num Terceiro Setor cada vez mais sem sentido, parte constitutiva de uma sociedade também cada vez mais sem sentido (o sentido é dado pelos porquês), não seria o momento das próprias organizações da sociedade civil, e não só os pesquisadores da academia, fazerem uma profunda, decisiva e paradigmática revisão crítica de sua caminhada nessas mais de duas décadas de discurso gerencialista entre as ONG´s brasileiras? Instigar é fácil, construir a reflexividade é bem mais difícil. Mas, o sujeito de sua história, seja ele um indivíduo ou uma instituição, desejando essa revisão, consegue dar seus passos dialeticamente. Essa é minha humilde visão dos processos de emancipação social, ainda que, tenho que confessar, trata-se de uma concepção um pouco ingênua e muito otimista. Mas é ela que me nutre na minha sina no ensino de Gestão Social e, para mim, se constitui em uma das múltiplas maneiras de dizer: Eu Acredito!

Versão ampliada do artigo TEODÓSIO, A. S. S. Gerencialismo no Terceiro Setor. Hoje em Dia, Caderno Eu Acredito!, 24/09/09, p. 13.

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