Os acontecimentos recentes na segurança pública brasileira mobilizaram as pessoas, as instituições, as organizações não-governamentais e a mídia, em especial, de forma bastante intensa. Ver o centro econômico brasileiro em ebulição, como um caldeirão de violência e criminalidade, deixou a todos atônitos e assustados.
O medo, como qualquer outro sentimento humano, tem seu lado positivo e negativo. Os que pensam que a hesitação, o receio e a dúvida são fraquezas dos indivíduos, e todos que deveriam adotar no seu lugar posturas mais decisivas e certeiras em suas vidas, podem estar equivocados. Não só a psicologia, mas também as ciências naturais, sobretudo a biologia, oferecem um rico arsenal de conceitos e teorias que permitem se entender a importância do medo para a sobrevivência das espécies e para o convívio em sociedade. O medo pode levar ao imobilismo, mas pode também permitir ao homem refletir melhor sobre todas as conseqüências de seus atos e decisões, já dizia o prêmio Nobel de economia Herbert Simon.
Mas, infelizmente, o medo da criminalidade, que voltou mais forte ainda com a onda de violência por todo o Brasil, tem levado autoridades, instituições, profissionais da mídia e indivíduos à fúria, à posturas impensadas e, quando não, ao imobilismo. O medo, na medida em que transcende a dimensão dos sentimentos individuais e alcança a dinâmica da vida em sociedade, ou seja, da coletividade, pode resultar em sérios desafios para a construção de uma sociedade mais justa, eqüitativa e também segura. Nos recentes episódios de violência e criminalidade generalizada multiplicaram-se opiniões e apelos para uma maior rigidez das autoridades policiais e implicitamente, ou mesmo explicitamente, o apoio a medidas que afrontam os direitos humanos.
Direitos humanos, para muitos de nossa sociedade, é uma palavra que deveria se abolida de nosso repertório social quanto se trata de criminosos. Essa é uma postura que afronta a ética e as virtudes cidadãs. Mas como muitos dos que defendem a morte ou o tratamento cruel aos presos radicalizam suas posições, não adianta relembrar que a vida tem um valor central e que não se pode abrir mão dela sem maiores conseqüências. É preciso dialogar em outras bases com os que defendem a cadeira elétrica para os bandidos, caso contrário não se avança na compreensão dos problemas de criminalidade no Brasil e nas possíveis soluções para a verdadeira guerrilha urbana em que se vive.
Nos países nos quais a pena de morte foi adotada as taxas de criminalidade não se reduziram. Em outros, a taxa de criminalidade até chegou a subir. Portanto, caso não se dê valor a vida dos criminosos, pois “bandido tem que morrer mesmo”, deve-se pensar mais seriamente como conter a criminalidade com eficiência. A pena capital não aparece como uma alternativa eficaz para isso.
O problema da segurança pública precisa ser entendido como um desafio para toda a sociedade brasileira e para diferentes instituições públicas. Não basta equipar melhor a política e exigir dela mais rigidez e violência no combate a criminalidade. Caso a pena de morte fosse adotada no país, permanecendo as mesmas condições de gestão das instituições públicas, o mesmo sistema de trabalho dos policiais e o mesmo sistema judiciário, aqueles que morreriam seriam os criminosos menos poderosos, organizados e perigosos para a sociedade. Os mais perigosos, e essa periculosidade está também ligada ao fato de poderem se articular em grupos, quadrilhas e facções, seriam os que sobreviveriam ao sistema da pena de morte.
Atualmente, acumulam-se ineficiências em diferentes etapas do sistema de apuração e punição de crimes na sociedade. A polícia não consegue investigar todos os crimes. Dos crimes apurados, alguns se consegue encaminhar ao tribunal, outros não. Dos crimes encaminhados, alguns levam décadas para serem julgados. Daqueles que são julgados no tribunal, vários são absolvidos, principalmente quando se pode pagar bons advogados. Finalmente, vão para a cadeia os mais fracos. Lá dentro, aqueles que não passam a fazer parte de algum grupo criminoso enfrentam sérias dificuldades para sobreviver. No final, permanece na cadeia o pobre e sem recursos para a defesa. É ele que irá para a cadeira elétrica.
Outro grande mito por detrás da criminalidade está ligado à idéia, muito difundida até mesmo pelos defensores dos Direitos Humanos, de que o banditismo está ligado à falta de oportunidades de emprego e renda para a população mais pobre. O Brasil possui alguns dos centros de estudos sobre criminalidade mais avançados e reconhecidos internacionalmente. Antônio Paixão, Cláudio Beato e o atual subsecretário de segurança pública de Minas Gerais, o professor Luiz Flávio Sapori são alguns do que defendem a idéia de que o avanço do crime não está ligado essencialmente ao desenvolvimento econômico. Uma prova contundente disso é que nos países nos quais a economia cresce, aumenta também a criminalidade. Paises ricos e com economias sólidas também padecem com altos índices de criminalidade. Além disso, como explicar que é crescente o número de criminosos oriundos de famílias de classe média, que teoricamente teriam boas oportunidades de acesso ao emprego e renda?
Na verdade, a criminalidade está ligada à sensação de impunidade e a vida em centros urbanos. Mesmo que se gerassem emprego e renda para todos os jovens e adolescentes em situação de risco social, como competir com o tráfico de drogas, que paga dez vezes mais que o salário mínimo pago aos “office boys” dos escritórios? Além disso, pertencer ao tráfico traz status social e reforça a imagem de masculinidade e poder junto a comunidade. Para complicar, muitos desses jovens vêm de famílias desagregadas, incapazes de competir com a sedução do crime organizado e lhes incutir valores para o exercício da cidadania.
É cômodo demais para as classes alta e média (eu me incluo na classe média), ficar sentada assistindo televisão, se assustando com os crimes e pregando a morte e a punição dolorosa para os bandidos. Não raras as vezes essas mesmas classes abastadas são tolerantes com seus filhos consumindo drogas, batendo pegas de carro e desrespeitando uma série de leis. No Brasil de hoje, a impunidade virou certeza para muitos. Os pobres que recorrem à criminalidade só reproduzem a sensação que podem tudo fazer, visto que políticos, empresários poderosos e os grupos abastados da sociedade lhe ensinam, com seus exemplos de vida no dia-a-dia, que a punição pelos crimes e desvios quase nunca acontece.
Para aqueles que ainda não se convenceram desses argumentos, cabe destacar a política de “tolerância zero” implantada pela prefeitura de Nova Yorque. Com ela, a punição a todo e qualquer crime, cometido seja pelo “colarinho branco” ou pelo “ladrão de galinha” passou a ser uma certeza para muitos, reduzindo a sensação de que se vive em um mundo sem regras, leis e códigos de vida em comunidade. Além disso, a “tolerância zero” foi acompanhada de uma série de políticas sociais, capazes de mudar as expectativas de vida de muitos jovens de famílias pobres.
O mar de criminalidade da cidade americana se transformou hoje na certeza que basta apenas esforço, competência e boas idéias para se superar os problemas de criminalidade. Nossas instituições públicas, nossas organizações da sociedade civil e nós mesmos estamos preparados para fazer isso, para fazer a nossa parte? Ou será que vamos preferir a posição cômoda de dar vazão a nossos medos e fazer a fúria dar respostas à criminalidade?
Para quem quiser se aprofundar nesse assunto, é interessante ler não só o recente livro de Luiz Eduardo Soares e MV Bill (“Cabeça de Porco”), mas o excelente “Meu Casaco de General” da editora Companhia das Letras, escrito por Soares. Para os que preferem assistir documentários a ler, o premiado “Retratos de uma guerra particular” é essencial. Diferentemente de “Falcões”, exibido no Fantástico, esse documentário mostra todos os envolvidos com a criminalidade (bandidos, pessoas da comunidade, policiais, vítimas, autoridades, ...), desnudando os dramas e tramas de uma sociedade que cada vez mais vive sob a sombra do medo e parece atônita, em vez de dar respostas contundentes contra a criminalidade.
Publicação original: TEODÓSIO, A. S. S. O medo nosso de cada dia. In: Circuito Notícias. Brumadinho: Circuito Notícias, ano 12, edição 143, 31/05/2006, p. 3.
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